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São Luís (MA), 11 de março de 2025

Vencemos a covid, mas movimento antivacina é um problema hoje, diz pneumologista

Em entrevista, médica e pesquisadora reflete sobre os 5 anos da pandemia e aponta desafios para a saúde no Brasil atual

Em entrevista, médica e pesquisadora reflete sobre os 5 anos da pandemia e aponta desafios para a saúde no Brasil atual

Por Andrea DiP, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, Ana Alice de Lima | Edição: Bruno Fonseca

“Teremos o março mais triste de nossas vidas”, disse a médica pneumologista Margareth Dalcolmo, em 2 de março de 2021. Na entrevista à BBC, Dalcomo, que também é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, alertava para as UTIs e leitos de enfermaria lotados de pacientes com covid-19. E ela não errou na previsão: o mês bateria todos os tristes recordes de toda a pandemia, com mais de 79 mil mortes no Brasil, um número aterrador que ainda hoje é difícil de contabilizar.

Esse não foi o único alerta grave dado pela médica, antes o contrário. Durante toda a pandemia, Dalcomo foi a jornais para alertar que o perigo era real, e que medidas restritivas seriam importantes se quiséssemos manter mais gente viva. E ela seguiu fazendo isso, ainda que seus avisos nem sempre fossem bem recebidos.

“Eu me lembro que, no Natal de 2020, eu dei uma entrevista no dia 23 de dezembro, dizendo que não podia ter Natal, não podia receber avô, avô não podia ver neto, não podia ver tio, ninguém doente. Enfim, que o Natal teria que ser uma coisa extremamente restrita. Acho que, em alguns momentos, fomos muito veementes, porque precisávamos ser, e, quando eu disse que não podia ter Natal, morriam naquele momento 2 mil pessoas por dia. Não era possível estimularmos algo que poderia trazer dano às famílias, e mais luto e mais tristeza”, relembra.

Em entrevista para a Agência Pública, que você também poderá ouvir em áudio no podcast Pauta Pública do dia 14 de março, Dalcomo faz uma autoavaliação sobre seu comportamento na pandemia e suas expectativas para o Brasil cinco anos após o início da emergência em saúde. Apesar de reconhecer acertos, como seus avisos veementes para que as pessoas se protegessem, ela reconhece que errou quando disse que a pandemia mudaria comportamentos e sairíamos melhores.

“Nós tínhamos uma esperança, eu diria, de que a humanidade pudesse se ‘humanizar’, ter uma mudança de comportamento, um olhar, usando a expressão de Saramago, um olhar para o outro de maneira diferente […] E nada disso aconteceu”.

Na entrevista, a médica também fala sobre como o movimento anti vacina não era forte no país, mas conseguiu se estabelecer durante a pandemia, inclusive impulsionado por ações do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que criticou a vacinação e defendeu curas falsas para a doença. Por outro lado, ela aponta como foi importante a adesão da população à vacinação no momento mais crítico da pandemia, que felizmente conseguiu tornar a covid-19 uma ameaça muito menos letal hoje.

Leia a entrevista completa e acompanhe aqui o Pauta Pública.

Médica e pesquisadora Margareth Dalcomo
Durante toda a pandemia, a médica Margareth Dalcomo foi a jornais para alertar sobre o perigo real da covid-19

Margareth, em 2021, a senhora escreveu um artigo que terminava assim: “podemos considerar que a Covid-19 será para a vida social no planeta o que a AIDS foi para a vida sexual. Mudará nossos comportamentos e paradigmas.” Após cinco anos de pandemia, como a senhora responde a essa avaliação?

Olha, eu já tenho feito uma crítica a mim mesma por ter errado redondamente na avaliação. E, na verdade, a minha avaliação se baseou em dados históricos. A história do homem no planeta é marcada por epidemias e por pandemias e, via de regra, a grande maioria delas gerou ao final, ao seu controle epidemiológico, seja espontâneo, seja por medidas tomadas pelos Estados onde houve os problemas – e o grande exemplo são as grandes pestes do final do século XIV -, elas geraram, em geral, um fenômeno cultural positivo, pelo menos, como foi o Renascimento, ao final de todas as grandes pestes que assolaram a Europa no final do século XIV.

Na pandemia da covid-19, nós tínhamos uma esperança, eu diria, de que a humanidade pudesse se ‘humanizar’, ter uma mudança de comportamento, um olhar, usando a expressão de Saramago, um olhar para o outro de maneira diferente.

E nada disso aconteceu. Na verdade, o mundo ficou pior, as guerras insanas apareceram, enfim, conflitos, exclusão social, e hoje nós vemos, quer dizer, não apenas não houve uma mudança de comportamento, a não ser em grupos muito localizados em relação aos cuidados relacionados à AIDS ou à infecção pelo HIV, onde também existe aí uma diferença, como nós temos visto hoje, sobretudo pelo impacto dos cortes norte-americanos [no financiamento de programas de assistência à saúde a outros países].

Então, hoje, na verdade, o meu olhar está muito decepcionado sobre uma esperança que eu nutri, tendo em vista tanto sofrimento que nós tivemos, há cinco anos. Essa retrospectiva, para mim, é uma retrospectiva muito decepcionante em relação à minha própria esperança, conforme eu manifestei nesse artigo.

Do ponto de vista social, o que a senhora observa na sociedade brasileira? O que ficou depois da pandemia?

Eu sempre fui uma otimista muito determinada, porque acredito nas medidas da ciência, acredito que não precisávamos ter tido mais de 700 mil mortes por covid-19 no Brasil.

Alcançamos uma taxa de cobertura [de vacinação], no momento inicial, bastante importante, mas tivemos como resultado também uma disseminação da desinformação e do obscurantismo que, para mim, é muito decepcionante. Vejo até entre grupos de médicos desinformando a população, trazendo medo, trazendo dúvidas sobre medidas de saúde pública que são tão marcadamente demonstradas como positivas, e uma delas é a vacinação.

Na verdade, [a desinformação] foi um fenômeno novo no Brasil. O Brasil nunca tinha tido nenhum movimento anti-vax [anti vacina] até a pandemia da covid-19. Pelo contrário, o Brasil é um país que tem uma tradição de adesão às vacinas muito grande, mesmo que haja um entendimento, digamos, desigual sobre o impacto das vacinas na esperança de vida ao nascer do brasileiro.

E tudo isso hoje nós vemos, inclusive pelo discurso absolutamente deplorável do atual ministro da Saúde norte-americano [Robert F. Kennedy Jr], que propala uma retórica, a meu juízo, extremamente nociva, e contamina as pessoas com um pensamento totalmente equivocado em relação a isso [as vacinas].

Agora, para o Brasil é preciso deixar claro, não há dúvida de que o impacto da vacinação foi positivo, e muita gente entende isso. Para outros não foram, infelizmente, por diversas razões, seja ideológica, religiosa…

Túmulos de pessoas mortas durante a pandemia de covid-19 no cemitério Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da cidade de São Paulo
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E a senhora falou que a gente nunca tinha tido um movimento anti-vax antes da pandemia no Brasil. Isso mudou depois da pandemia? 

Sim, ele prosperou no Brasil. Hoje nós estamos tendo problemas objetivos. Eu fiz parte do comitê técnico do Ministério da Saúde que aprovou a vacina contra a dengue para a faixa etária que mais morria, que é entre 10 e 14 anos, prioritariamente.

Hoje a vacina [contra a dengue] está estendida para outras faixas etárias exatamente porque a adesão à vacinação foi muito menor do que a esperada, e tem vacinas sobrando na rede pública, com um tempo de validade que precisa ser aproveitado.

Então, o próprio Ministério reviu essa posição e abriu para outras faixas etárias. Mas é muito triste, como houve também uma queda na vacinação para a covid-19, com a vacina que foi aprovada e disponibilizada em 2024, que foi a monovalente, que deveria ter tido uma adesão bastante grande.

Nós sabemos que a covid-19 não poderá mais, a partir de agora, prescindir de um processo de vacinação regular, que muito provavelmente ficará acompanhado à vacinação de influenza. Já há, inclusive, estudos em desenvolvimento no sentido de buscar uma vacina associada à influenza e à covid-19, que poderá, eventualmente, ser anual.

Isso ainda é uma linha de estudos que está em desenvolvimento, mas a covid-19 precisará, sim, de ter vacinação regular ao longo do tempo.

Margareth, na contramão da maioria dos países do mundo, o Brasil estava liderado por um presidente [Jair Bolsonaro] que negava a ciência, que defendia essa retórica anti-vax e que atuou para que a população não tivesse acesso à vacina. E foi nesse contexto que o SUS teve que enfrentar a pandemia. A senhora podia contar como foi essa luta interna dentro do SUS? Porque, obviamente, é uma coisa que a gente não sabe o que acontece ali dentro.

Na verdade, o Brasil, desde o início, nós convivemos com uma tensão permanente, porque havia uma necessidade… Vários paradoxos aí se colocavam.

O Brasil foi um celeiro de desenvolvimento de estudos de fase 3 de vacinas excepcional. Nós desenvolvemos estudos com um grande número de inclusão de voluntários para várias plataformas vacinais, como nós sabemos. E nós sabíamos, desde o início, eu disse isso na minha primeira entrevista pública, que o afastamento físico, o isolamento social, seria uma arma poderosa contra uma doença de transmissão aguda respiratória. E isso, desde o início, foi contestado nas mais variadas manifestações, inclusive governamental. Então, essa tensão sempre permeou as nossas manifestações.

Eu me lembro que, no Natal de 2020, eu dei uma entrevista no dia 23 de dezembro, dizendo que não podia ter Natal, não podia receber avô, avô não podia ver neto, não podia ver tio, ninguém doente. Enfim, que o Natal teria que ser uma coisa extremamente restrita. Em 2021, como já havia começado o processo de vacinação no Brasil, com uma adesão bastante, eu diria, positiva, nós dissemos, um ano depois, que poderia haver um Natal, não um Natal grande, com muita gente, porque o risco aumentava, mas um Natal em família, com grupos pequenos, etc.

Então, assim, esse cuidado em informar as pessoas e não passar medo, dar sempre esperança, nós tivemos o cuidado de fazer o tempo inteiro, mas jamais deixando de dizer a verdade. Quando nós não pudemos, deixamos de ter os dados disponíveis, providos pelo próprio Ministério da Saúde, vocês se lembram disso? Quando os nossos dados eram providos por um consórcio de veículos de comunicação, e isso foi muito bem feito. Eu acho que, de modo geral, salvo desonrosas exceções, a imprensa brasileira optou por um caminho, nessa bifurcação, correto de nos ouvir.

E nós conseguimos, inclusive, tirar do ar, se eu puder usar essa expressão, pessoas que estavam dando informações muito imprecisas e que, na verdade, não passavam aquilo que a população queria saber. E é por isso que acho que algumas vozes, entre elas a minha, foram vozes que trouxeram um grau de confiança para as pessoas, porque as pessoas entendiam que nós estávamos dizendo a verdade.

Acho que, em alguns momentos, fomos muito veementes, porque precisávamos ser, e, quando eu disse que não podia ter Natal, morriam naquele momento 2 mil pessoas por dia. Não era possível estimularmos algo que poderia trazer dano às famílias, mais luto e mais tristeza.

Posto de testagem e vacina contra a covid-19
A testagem e a vacinação tornaram a Covid-19 muito menos letal hoje

E Margareth, você acha que a percepção da população sobre o SUS mudou durante e depois da pandemia?

Ah, sim. Eu acho que há um impacto mensurável, porque, inclusive, o SUS era algo muito distante das classes mais favorecidas brasileiras. Hoje, qualquer paciente privado que eu veja, de classe média ou de classe média alta, todo mundo sabe o que é o SUS.

Todo mundo sabe que as vacinas estão no SUS, que as vacinas que as crianças tomam, a grande maioria delas está no SUS, disponível, e que o SUS provê vacinas complexas e até de custo maior para pessoas em situações especiais de vulnerabilidade, como transplantados de órgão.

Todas as classes entenderam que os procedimentos de alto custo, por mais que alguém tenha um seguro de saúde privado, se você vai fazer um transplante de órgão, quem financia o transplante de órgão, quem faz o transplante que vai colher, que vai buscar do doador, que vai trazer, é o SUS.

Então, as pessoas entenderam o que é o Serviço Único de Saúde e que, na verdade, esse é um bem muito precioso, bem como tratamentos de alto custo que são providos governamentalmente no Brasil, como são, por exemplo, as doenças endêmicas.

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